sábado, 22 de agosto de 2009

O Tempo - Santo Agostinho


Trecho de Santo Agostinho, que será estudado dia 24/08:

(Excertos de: SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.)

O QUE É O TEMPO?
Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.
Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.
De que modo existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a não ser?

curso de vídeo-dança




Amigos,
em junho aconteceu no Alpendre novo encontro: o curso Entre o Vídeo e a Dança, ministrado por Andréa Bardawil e Alexandre Veras. Encontro precioso!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Como Resistir


Como resistir?
(por Manoel, sobre o encontro de 27/04)

“O devir político da arte torna-se confusão ética em que ambas, arte e política, se esvanecem precisamente em nome da sua união.” (p.7)

O texto de Rancière nos ajudou a levantar algumas questões, a começar pelo seu próprio título (Será que a arte resiste a alguma coisa? ).
A mais importante que pincei foi esta: como resistir?
Primeiro, o pensador nos lembra do conhecido clichê do artista como rebelde avesso a tudo e a todos, para propor um paradoxo: resistir é assumir a postura de quem se opõe à ordem das coisas, rejeitando ao mesmo tempo o risco de subverter essa ordem” uma vez que “conhecemos, de resto, a dupla dependência da arte em relação aos mercados e aos poderes públicos” (p.1)
Outro ponto, ele busca situar a inumanidade (uma linguagem dissensual), citando Deleuze sobre a arte, como forma de belo - sem o “B” maiúsculo - resistente “à determinação conceitual e à atração dos bens consumíveis” (p.3). Assim, desde Kant a arte se desenvolveu num jogo de regime estético em oposição ao regime clássico ou representativo. Trata-se do movimento de saída de uma série de regras de uma natureza produtora (poiesis) e receptora (aesthesis) de matriz aristotélica* e logocêntrica para a pesquisa da experiência sensível (sensorium), mais afim aos processos vitais de percepção e criação (mimesis) não-imitativos.
Ou seja, a libertação dos sentidos do artista e de seu público, como uma ação ética e política em si mesma.
Entre Kant, Deleuze, Hegel e outros, Rancière posiciona-se numa busca por uma resistência que está a partir e para além do pensamento dos primeiros, na tensão “irresolvida”, imanente - no oposto do que transcende - e amodal entre o monumento e enlace dos sentidos, entre a estabilização e a desestabilização, a política e a arte, respectivamente.
Esta posição me parece apontar para uma nova forma de pensar o tripé entre arte-artista-público (tripé que sustenta um discurso maior? Ou que serve de base para algo por vir?) no qual desenhar os comos é um ato inacabado, no sentido do que falamos no encontro sobre utopia, uma co-existência de multiplicidades.

*Ex: a Arte Poética com os paradigmas de unidade ou continuidade (tempo, espaço, ação) da tragédia grega e como uma representação teológica do mundo.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Mais um pouco...


"Então somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e de ser afetado, e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa. Vamos
aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que
com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o
que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui, e, por conseguinte, o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros, e a compor, é uma grande arte. A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir. Isso abre para um problema ético importante: como é que aqueles que detêm o poder fazem questão de nos afetar de tristeza? As paixões tristes como necessárias ao exercício do poder. Inspirar paixões tristes – é a relação necessária que impõe o sacerdote, o déspota, inspirar tristeza em seus sujeitos. A tristeza não é algo vago, é o afecto enquanto ele implica a diminuição da potência de agir. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois pólos, essas subidas e descidas, elevações e quedas." (Peter Pál Pelbart)

Ainda Peter...


“De que recursos dispõe uma pessoa ou um coletivo para afirmar um modo próprio de ocupar o espaço doméstico, de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar a memória coletiva, de produzir bens e conhecimento e fazê-los circular, de transitar por esferas consideradas invisíveis, de reinventar a corporeidade, de gerir a vizinhança e a solidariedade, de cuidar da infância ou da velhice, de lidar com o prazer ou a dor?” (Peter Pál Pelbart)

terça-feira, 24 de março de 2009

.multiplicação.

“Terão de inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade, isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer.”

“O problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas para além disso, usar de sua sexualidade, para chegar a uma multiplicidade de relações. E isso não é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável”

Fiquei com uma frase da Andréa na cabeça:


Tempo de encontro que não é tempo de urgência


um tempo do ter que já

de imediatismos

E lembrei em seguida da Lidu

Quais são nossos desejos nessas relações, como a gente se move nessas relações, o que lateja, o que é pulsante? Compartilhar com o outro as nossas inquietudes


ampliar para além de nós


e uma outra coisinha, desculpem não tenho certeza de quem foi essa frase, apesar de ter uma séria desconfiança de que foi Andréa.

Pacto de solidariedade como formas de existir.

Teremos sempre (sempre é uma palavrinha perigosa) de (re)inventar, as relações, para que elas possam estar e permanecer.

As relações atuais, como viver junto? Quando nossas urgências divergem, quando não há o encontro?

Encontrar um (no) outro que esteja disposto a compartilhar idéias, aqui lembro do exercício de estar coreografando.

Reunir pessoas que acreditem na sua idéia e com isso, a partir disso criar novas relações expandindo nossos pensamentos, dividindo, trocando.

Lançar questionamentos e estar pronto para a resposta do outro que pode não ser aquela que você esperava ou pode ser algo ainda melhor.


E o que lateja na gente vai latejar no outro.

O que pulsa em mim vai pulsar no outro.

O que pulsa em mim,vai pulsar no outro?

Criar relações.

Criar laços.

Parcerias.

Par.

Ímpares.

Multiplicação.

aspásia.

Da amizade, para pensar...

Presentes: Lidú, Andréa, Paulinho, Possi, Márcio, Aspásia, Mônica e Thati.

Flanando pelo texto:
Que relações podem ser inventadas?

"Como é possível para homens estarem juntos? (...) É u desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas."

O Amor: "Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que os indivídups comecem a se amar, e aí está o problema."

A ascese: o trabalho sobre si mesmo.

Um modo de vida: "Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividades sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se parecem com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética."

Paulinho: A cumplicidade entre pares. As irmandades se formam em todas as instâncias. A fragilidade nos aproxima.

Lidú: Perdemos o sentido de vizinhança.

Eu: A construção das condições de possibilidade se dá a partir construção das relações, e não o contrário.

Registrem suas anotações!
abraços,
andréa

domingo, 22 de março de 2009

Próximo encontro

Queridos,
chegamos de viagem, após uma semana DELICIOSA em Flexeiras, gravando Os Tempos. amanhã, Foucault: Da amizade como modo de vida. Nos vemos às 19h. abraços a todos, andréa

Da amizade como modo de vida

De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39. Tradução de wanderson flor do nascimento.

Você tem cinquenta anos. É um leitor deste jornal que existe há dois anos. O conjunto destes discursos te parece algo de positivo?
Que o jornal exista, é algo de positivo e importante. Ao seu jornal, o que eu pediria era que, lendo, eu não tivesse que colocar a questão da minha idade. Ora, a leitura me força a colocá-la. E eu não fiquei muito contente com a maneira que fui levado a fazê-lo. Muito simplesmente, eu não teria lugar ali.
- Quem sabe o problema seja da faixa etária dos que colaboram e dos que lêem: uma maioria entre 25 e 35 anos.
É claro. Quanto mais escrito por pessoas jovens, mais concerne às pessoas jovens. Mas o problema não é ceder lugar a uma faixa etária de um lado a outro, mas saber o que se pode fazer em relação à quase identificação da homossexualidade com o amor entre jovens.
Outra coisa da qual é preciso desconfiar é a tendência de levar a questão da homossexualidade para o problema "Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?" Quem sabe, seria melhor perguntar: "Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?" O problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. E isso, sem dúvida é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. Temos que nos esforçar em nos tornar homossexuais e não nos obstinarmos em reconhecer que o somos. Isso para onde caminha os desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade.
- Você pensou isso aos 20 anos ou descobriu no decorrer dos anos?
Tão longe quanto me recordo, desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso foi sempre, para mim, algo importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de existência: Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso de estar entre homens "nus", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas.
- Pode-se dizer que a relação com o desejo, com o prazer e a relação que alguém pode ter, seja dependente de sua idade?
Sim, muito profundamente. Entre um homem e uma mulher mais jovem, a instituição facilita as diferenças de idade, as aceita e as faz funcionar. Dois homens de idades notavelmente diferentes, que código têm para se comunicar? Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que os tranquilize sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer.
É uma das concessões que se fazem aos outros de apenas apresentar a homossexualidade sob a forma de um prazer imediato, de dois jovens que se encontram na rua, se seduzam por um olhar, que põem a mão na bunda um do outro, e se lançando ao ar por um quarto de hora. Esta é uma imagem comum da homossexualidade que perde toda a sua virtualidade inquietante por duas razões: ela responde a um cânone tranqüilizador da beleza e anula o que pode vir a inquietar no afeto, carinho, amizade, fidelidade, coleguismo, companheirismo, aos quais uma sociedade um pouco destrutiva não pode ceder espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas. Penso que é isto o que torna "perturbadora" a homossexualidade: o modo de vida homossexual muito mais que o ato sexual mesmo. Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, e ai está o problema. A instituição é sacudida, intensidades afetivas a atravessam, ao mesmo tempo, a dominam e perturbam. Olhe o exército: ali o amor entre homens é, incessantemente convocado e honrado. Os códigos institucionais não podem validar estas relações das intensidades múltiplas, das cores variáveis, dos movimentos imperceptíveis, das formas que se modificam. Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito.
- Você diz a todo momento: "mais que chorar por prazeres esfacelados, me interessa o que podemos fazer de nós mesmos". Poderia explicar melhor?
O ascetismo como renúncia ao prazer tem má reputação. Porém a ascese é outra coisa. É o trabalho que se faz sobre si mesmo para transformar-se ou para fazer aparecer esse si que, felizmente, não se alcança jamais. Não seria este o nosso problema hoje? Nós colocamos o ascetismo em férias. Temos que avançar sobre uma ascese homossexual que nos faria trabalhar sobre nós mesmos e inventar – não digo descobrir – uma maneira de ser, ainda improvável.
- Isso quer dizer que um jovem homossexual deveria ser muito prudente em relação à imagem homossexual e trabalhar sobre outra coisa?
Isso em que devemos trabalhar, me parece, não é tanto em liberar nossos desejos, mas em tornar a nós mesmos infinitamente mais suscetíveis a prazeres. É preciso, e é preciso fazer escapar às duas fórmulas completamente feitas sobre o puro encontro sexual e sobre a fusão amorosa das identidades.
- Pode-se ver premissas de construções relacionais fortes nos EUA, sobretudo, nas cidades onde o problema da miséria sexual parece resolvido?
O que me parece certo é que nos EUA, mesmo se o fundo da miséria sexual ainda exista, o interesse pela amizade está se tornando muito importante. Não se entra simplesmente na relação para poder chegar à consumação sexual, o que se faz muito facilmente; mas aquilo para o que as pessoas são polarizadas é a amizade. Como chegar, por meio das práticas sexuais, a um sistema relacional? É possível criar um modo de vida homossexual?
Esta noção de modo de vida me parece importante. Não seria preciso introduzir uma diversificação outra que não aquela devida às classes sociais, diferenças de profissão, de níveis culturais, uma diversificação que seria também uma forma de relação e que seria "o modo de vida"? Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se parecem com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida.
- Não é uma mitologia dizer: "Aí estão, talvez, as premissas de uma socialização entre os seres, que é inter-classes, inter-idades, inter-nacionais?"
Sim, um grande mito como dizer: não haverá mais diferenças entre a homossexualidade e a heterossexualidade. Por outro lado, penso que é uma das razões pelas quais a homossexualidade se torna um problema atualmente. Acontece que a afirmação de que ser homossexual é ser um homem e que este se ama, esta busca de um modo de vida vai ao encontro desta ideologia dos movimentos de liberação sexual dos anos sessenta. Nesse sentido os "clones" bigodudos têm uma significação. É um modo de responder: "Não receiem nada, quanto mais se seja liberado, menos se amará as mulheres, menos se fundirá nesta polissexualidade onde não há mais diferença entre uns e outros." E não se trata, de modo algum, da idéia de uma grande fusão comunitária.
A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela posição de "enviesado", em qualquer forma, as linhas diagonais que se podem traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecer essas virtualidades.
- As mulheres poderiam objetar: "O que é que os homens ganham entre eles e ganham em relação às relações possíveis entre um homem e uma mulher ou entre duas mulheres?"
Há um livro que apareceu nos EUA sobre a amizade entre as mulheres (Faderman, L. Surpassing the Love of Men. New York: William Marrow, 1980). É muito bem documentado a partir de testemunhos de relações de afeição e paixão entre mulheres. No prefácio, a autora diz que ela havia partido da idéia de detectar as relações homossexuais e se deu por conta de que essas relações não somente não estavam sempre presentes, mas que não era interessante saber se se poderia chamar a isso de homossexualidade ou não. E que, deixando a relação desdobrar-se tal como ela aparece nas palavras e nos gestos, apareceriam outras coisas bastante essenciais: amores, afetos densos, maravilhosos, ensolarados ou mesmo, muito tristes, muito negros. Este livro mostra também em que ponto o corpo da mulher desempenhou um grande papel e os contatos entre os corpos femininos: uma mulher penteia outra mulher, ela se deixa maquiar e vestir. As mulheres teriam direito ao corpo de outras mulheres, segurar pela cintura, abraçar-se. O corpo do homem estava proibido ao homem de maneira mais drástica. Se é verdade que a vida entre mulheres era tolerada, é somente em certos períodos e a partir do séc. XIX que a vida entre homens foi, não somente tolerada, mas rigorosamente obrigatória: simplesmente durante as guerras.
Igualmente nos campos de prisioneiros. Havia soldados, jovens oficiais que passaram meses, anos juntos. Durante a guerra de 14, os homens viviam completamente juntos, uns sobre aos outros, e, para eles isso não era nada, na medida em que a morte estava ali; e de onde finalmente a devoção de um ao outro, o serviço feito era sancionado por um jogo de vida e morte. Fora algumas frases sobre o coleguismo, sobre a fraternidade da alma, de alguns testemunhos muito parciais, o que se sabe sobre furacões afetivos, sobre essas tempestades do coração que puderam haver ali nesses momentos? E alguém pode perguntar o faz que nessas guerras absurdas, grotescas, nesses massacres infernais, que as pessoas, apesar de tudo, tenham se sustentado? Sem dúvida, um tecido afetivo. Não quero dizer que era porque eles estavam amando uns aos outros que continuavam combatendo. Mas a honra, a coragem, a dignidade, o sacrifício, sair da trincheira com o companheiro, diante do companheiro, isso implicava uma trama afetiva muito intensa. Isto não quer dizer: "Ah, está ai a homossexualidade!" Detesto este tipo de raciocínio. Mas sem dúvida se tem ai uma das condições, não a única, que permitiu suportar essa vida infernal em que as pessoas, durante semanas, rolassem no barro, entre os cadáveres, a merda, se arrebentassem de fome; e estivessem bêbadas na manhã do ataque.
Eu queria dizer, enfim, que qualquer coisa refletida e voluntária, como uma publicação, deveria tornar possível uma cultura homossexual, isto é, possibilitar os instrumentos para relações polimorfas, variáveis, individualmente moduladas. Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa. Desde que um programa se apresenta, ele faz lei, é uma proibição de inventar. Deveria haver uma inventividade própria de uma situação como a nossa e que estas vontades disso que os americanos chamam de comming out, isto é, de se manifestar. O programa deve ser vazio. É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas não necessárias. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?
- Obrigado, Michel Foucault.